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A psiquiatria deve sonhar com uma sociedade melhor, diz neurocientista

Sidarta Ribeiro, professor titular do Instituto do Cérebro da UFRN, afirma que, em vez de simplesmente tratar os transtornos mentais, é preciso estimular um e...

A psiquiatria deve sonhar com uma sociedade melhor, diz neurocientista
A psiquiatria deve sonhar com uma sociedade melhor, diz neurocientista (Foto: Reprodução)

Sidarta Ribeiro, professor titular do Instituto do Cérebro da UFRN, afirma que, em vez de simplesmente tratar os transtornos mentais, é preciso estimular um estilo de vida saudável a partir da compreensão de que o adoecimento mental é frequentemente produzido pela própria sociedade O neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro, doutor pela Universidade Rockfeller e pós-doutor pela Universidade Duke, é professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e autor de mais de cem artigos científicos. No mais recente, assina, com os também pesquisadores Ana Pimentel, Valter Fernandes, Andrea Deslandes e Paulo Amarante, “It´s time for more holistic practices in mental health” (“Está na hora de mais práticas holísticas na saúde mental”), publicado na revista científica “PLOS Mental Health”. O neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro, professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Divulgação: Luiza Mugnol Ugarte Diante da estimativa da Organização Mundial da Saúde de que a prevalência de distúrbios mentais na população mundial saiu de um patamar de 416 milhões, em 1990, para 615 milhões de indivíduos, os autores ponderam que é preciso que a abordagem terapêutica mude seu foco: em vez de simplesmente tratar os transtornos mentais, estimular um estilo de vida saudável a partir da compreensão de que o adoecimento mental é frequentemente produzido pela própria sociedade. Sono de qualidade já representa um passo fundamental para melhorar a saúde mental, escrevem, acrescentando que os fatores sociais não podem ser ignorados porque interferem fortemente no bem-estar das pessoas. Por e-mail, o professor respondeu às perguntas do blog: No artigo, vocês afirmam que o modelo tradicional da psiquiatria, centrado na ideia da doença, do distúrbio, e baseado num tratamento farmacológico cujo objetivo é restaurar um “equilíbrio químico”, entrou em colapso nos últimos anos. No entanto, por que ele continua sendo o adotado não apenas no sistema público de saúde, mas, muitas vezes, em consultórios caros? Sidarta Ribeiro: Em primeiro lugar, pelo evidente conflito de interesses da indústria farmacêutica, que aufere lucros gigantescos na comercialização de drogas que supostamente restauram tal equilíbrio químico. Em segundo lugar, pela insistência de muitos profissionais da saúde neste modelo ultrapassado que considera a depressão um problema bioquímico e não um problema social. Por ingenuidade ou também por conflitos de interesse, essa insistência promove a hipermedicalização com ênfase na doença, em vez do foco em estilo de vida saudável, com crítica das relações trabalhistas adoecedoras, das políticas públicas insuficientes e das pandemias de alimentos ultraprocessados e superestimulação por telas. Conceitos como os determinantes sociais de saúde, que englobam o conjunto de fatores relevantes para o bem-estar de uma pessoa, como acesso a moradia, educação e segurança financeira, entre outros, apontam na direção de que a saúde social deve ter o mesmo status da saúde física e mental. Por que eles ainda estão fora do radar na formação dos profissionais de saúde? Sidarta Ribeiro: Com honrosas exceções, a formação médica no Brasil é bastante elitista e desconectada da perspectiva popular, sendo percebida menos como vocação para o cuidado e mais como via de ascensão social. Estudantes de medicina não são educados para criticar as péssimas condições de vida da maioria da população, nem para considerá-las sistemicamente, muito menos para assumir posicionamentos políticos para melhorar tais condições, mas sim para tratar transtornos e doenças apenas como fenômenos biológicos, estritamente ao nível do indivíduo. Na área da saúde mental, o que se viu, nas últimas décadas, foi o aumento significativo do uso de medicamentos, inclusive para crianças. No entanto, como descrevem no texto, “os pacientes estão se afogando em ansiedade, depressão, desespero”. O que está dando errado? Sidarta Ribeiro: Os mais básicos pilares da boa saúde – sono de boa qualidade, nutrição adequada e exercícios físicos apropriados – são incompatíveis com os estilos de vida insalubres que o atual sistema econômico promove. O planeta atravessa duas gigantescas crises, com a explosão da desigualdade social e do desequilíbrio ambiental. Os antidepressivos não nos redimiram nem vão nos redimir dessas crises. É preciso construir uma sociedade em que seja possível viver bem. Poderia explicar o que é a abordagem holística a que se referem no artigo? Sidarta Ribeiro: Trata-se da adoção de múltiplas práticas saudáveis que podem mitigar a dor psíquica com mais benefícios e menos efeitos adversos do que as drogas atualmente utilizadas. Tais práticas incluem ioga, capoeira, psicoterapia, jardinagem, teatro, artes plásticas, música, dança e contato com a natureza, entre muitas outras. “A psiquiatria deve sonhar com uma sociedade melhor”, vocês afirmam no fim do artigo. O que pode ser feito para mudar tal situação? Sidarta Ribeiro: A psiquiatria não pode se contentar em medicalizar as mazelas do capitalismo, sem incidir no enfrentamento de desequilíbrios psicológicos e fisiológicos que são socialmente construídos. Os déficits de sono, nutrição, exercício, introspecção e outros pilares de uma boa saúde mental não ocorrem no vácuo, são produzidos pela forma como vivemos. As condições precárias de trabalho e de habitação, o desemprego, o racismo, a misoginia, a homofobia, a transfobia, a violência física e simbólica, a guerra contra as pessoas que consomem determinadas drogas e outras formas de preconceito social contribuem para o sofrimento mental e devem ser consideradas sistemicamente. A psiquiatria precisa se engajar na luta por uma abordagem mais naturalista e benigna capaz de promover o bem-estar mental, fortalecendo as conexões com o próprio corpo, a natureza e a comunidade.